Trabalho como Princípio Educativo
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Princípios são leis ou fundamentos gerais de uma
determinada racionalidade, dos quais derivam leis ou questões mais específicas.
No caso do trabalho como princípio educativo, a afirmação remete à relação
entre o trabalho e a educação, no qual se afirma o caráter formativo do
trabalho e da educação como ação humanizadora por meio do desenvolvimento de
todas as potencialidades do ser humano. Seu campo específico de discussão
teórica é o materialismo histórico em que se parte do trabalho como produtor
dos meios de vida, tanto nos aspectos materiais como culturais, ou seja, de conhecimento,
de criação material e simbólica, e de formas de sociabilidade (Marx, 1979).
Além dessa questão
mais geral, há de se considerar o trabalho na sociedade moderna
e contemporânea onde a
produção dos meios de existência se faz dentro do sistema capitalista. Esse se mantém e se reproduz pela apropriação
privada de um tempo de trabalho do trabalhador que vende sua força de trabalho ao empresário ou empregador, o detentor
dos meios de produção. O salário ou remuneração recebida
pelo trabalhador não contempla o tempo de trabalho excedente
ao valor contratado que é apropriado
pelo dono do capital.
Historicamente, o ser humano utiliza-se dos bens da
natureza por intermédio do trabalho e, assim,
produz os meios de sobrevivência e conhecimento. Posto a serviço de outrem, no
entanto, nas formas sociais de
dominação, o trabalho ganha um sentido ambivalente. É o caso das sociedades antigas e suas formas servis e
escravistas, e das sociedades modernas e contemporâneas capitalistas. As palavras trabalho, labor (inglês), travail
(francês), arbeit (alemão), ponos (grego) têm a mesma raiz de fadiga, pena, sofrimento, pobreza
que ganham materialidade nas fábricas-conventos, fábricas- prisões,
fábricas sem salário.
A transformação moderna do significado da palavra deu-lhe o sentido
de positividade, como argumenta John Locke que descobre o trabalho como
fonte de propriedade; Adam Smith que
o defende como fonte de toda a riqueza; e Karl Marx para quem o trabalho é
fonte de toda a produtividade e
expressão da humanidade do ser
humano (De Decca, 1985).
Em termos cronológicos, essa ambivalência do termo ganha
forma a partir do século XVI, se considerarmos o Renascimento e a transformação do sentido da palavra trabalho
como a mais elevada
atividade humana e o nascimento das fábricas; ou a partir do século XVIII, se
considerarmos o industrialismo e a
Revolução Industrial nos seus primórdios na Inglaterra (De Decca, op. cit.; Iglesias,
1982). Marx (1980) vai realizar o mais completo estudo dos economistas que o precederam
e a mais aguda crítica ao modo de produção capitalista e às contradições
implícitas nas relações entre o trabalho e o capital.
Desenvolve os conceitos de valor de uso e de valor de troca
presentes na mercadoria. Os valores
de uso são os objetos produzidos para a satisfação das necessidades humanas,
como bens de subsistência e de
consumo pessoal e familiar. Definem-se pela qualidade, são as diversas formas
de usar as coisas, de transformar
os objetos da natureza, gerando
cultura e sociabilidade.
Mas os mesmos
objetos, as mesmas
mercadorias que têm uma existência histórica milenar, quando
se tornam objeto de troca, quantidades que se equivalem
a outras, tempo de trabalho
que tem um equivalente em salário, inserem-se em relações sociais
de outra natureza.
Criam-se vínculos de submissão e exploração do produtor e de dominação
por parte de quem se apropria do produto e do tempo
de trabalho excedente. Esse gera uma certa quantidade de valor que vai propiciar
a acumulação e a reprodução
do capital investido inicialmente pelo capitalista (Marx, op. cit., 1º. cap.). O fetiche da mercadoria, o seu caráter
misterioso, como diz Marx, provém da própria
forma de produzir valor. “A igualdade dos trabalhos humanos
fica disfarçada sob a forma
da igualdade dos produtos do trabalho como valores; a medida, por meio da duração, do dispêndio da força humana do trabalho toma a forma de quantidade de valor dos produtos do trabalho; finalmente, as relações entre os produtores, nas quais se afirma o caráter social
de seus trabalhos, assumem a forma de relação social entre os produtos
do trabalho” (ibid.,
p. 80).
Essa separação do trabalhador de seu próprio fazer é o que
Marx (2004) chamou de alienação (ou estranhamento, dependendo da interpretação do tradutor do original
alemão). O conceito veio a ser
desenvolvido posteriormente por autores marxistas (dos quais citamos Meszáros,
1981; Antunes, 2004; Kohan, 2004;
Lessa, 2002). O fenômeno da alienação do trabalho e do trabalhador da riqueza social que ele produz foi expresso e criticado de forma contundente por Marx ao analisar as condições
de privação e sofrimento dos trabalhadores e de seus filhos nos primórdios da
Revolução Industrial. Ainda hoje, em todo o mundo, milhões
de trabalhadores são submetidos a salários de fome, insuficientes para uma vida digna
para eles e suas famílias.
No Brasil, diante da penúria e das más condições de vida e
de trabalho de operários e de trabalhadores
do campo, ao final da Ditadura civil-militar, nos anos 1980, foram muito
discutidas as propostas da educação
na Constituinte de 1988 e os termos da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Os pesquisadores e
educadores da área trabalho e educação tiveram de enfrentar uma questão fundamental: se o trabalho
pode ser alienante e embrutecedor, como pode ser princípio educativo, humanizador, de formação humana?
No entanto, desde o início do século XX, com a criação das
Escolas de Aprendizes e Artífices em
1909, havia a evidência histórica da introdução do trabalho (das oficinas, do
artesanato, dos trabalhos manuais) em instituições educacionais. E existia a experiência
socialista do início do mesmo século, introduzindo a educação politécnica com o
objetivo de formação humana em todos os seus aspectos, físico, mental,
intelectual, prático, laboral, estético, político, combinando estudo e trabalho.
Vários autores se debruçaram sobre o tema porque tratava-se de defender uma educação que não
tivesse apenas fins assistenciais, moralizantes, como aquelas primeiras
escolas. Também que não se limitasse
a preparar para o trabalho nas fábricas, a exemplo da iniciativa do Sistema
Nacional de Aprendizagem Industrial
(Senai), criado no governo de Getúlio Vargas, em 1943. Criticava-se, ainda, o tecnicismo voltado ao mercado de
trabalho, a adoção do industrialismo pelo sistema das Escolas Técnicas
Federais, criado no mesmo período Vargas.
De outra parte, a idéia de educação politécnica sofria
ataques por sua inspiração socialista, implantada pelo regime comunista da
Revolução Russa de 1917 que, tendo por base a obra Marx, buscava a combinação da
instrução e do trabalho. Segundo Manacorda (1989), o marxismo reconhece a “função
civilizadora do capital”; não rejeita, antes aceita “as conquistas ideais e práticas
da burguesia no campo da instrução...: universalidade, laicidade, estatalidade,
gratuidade, renovação cultural, assunção da temática do trabalho, como também a
compreensão dos aspectos literário, intelectual, moral, físico, industrial e
cívico”. Mas Marx faz dura crítica à burguesia por não assumir de forma radical
e conseqüente a união instrução-trabalho (p.296).
O Manifesto Comunista
(Marx, 1998) é claro quando recomenda: “educação pública e gratuita para todas as crianças. Abolição do
trabalho infantil nas fábricas na sua forma atual. Combinação da educação com a
produção material etc.” (p.31). Em O Capital, Marx (1980), explicita a ideia de
educação politécnica ou tecnológica: “Do sistema fabril, como expõe
pormenorizadamente Robert Owen, brotou o germe da educação do futuro que
combinará o trabalho produtivo de todos os meninos além de uma certa idade com
o ensino e a ginástica, constituindo-se em método de elevar a produção social e
de único meio de produzir seres humanos plenamente desenvolvidos” (p. 554).
Assim sendo, a discussão
sobre o trabalho como princípio educativo esteve associada à discussão sobre a politecnia
e sua viabilidade social e política no país. Historicamente, como demonstra a
análise de Fonseca (1986), sempre predominou o conservadorismo das elites,
reservando para si a formação literária e científica. Para os trabalhadores
prevaleceu a oferta de educação elementar e não universalizada para toda a população.
Além disso, o dualismo educacional se expressa na destinação dos filhos dos
trabalhadores ao trabalho e ao preparo para as atividades manuais e
profissionalizantes.
Essa discussão e sua expressão político-prática retornaram
nos anos neoliberais de 1990, com a exaração
do Decreto n. 2.208/97. Contrariando a LDB (Lei n. 9.394/96) que “tem por
finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da
cidadania e qualificação para o trabalho” (art.2º.), implantou-se a separação
entre o ensino médio geral e a educação profissional técnica de nível médio.
Nos anos 2000, em condições políticas polêmicas, o Governo exarou o Decreto n.
5.154/04 que revogou o anterior e abriu a alternativa da formação integrada
entre a formação geral e a educação profissional, técnica e tecnológica de nível
médio.
Do ponto de vista político-pedagógico, tanto a conceituação
do trabalho como princípio educativo
quanto a defesa da educação politécnica e da formação integrada, formulada por educadores
brasileiros, pesquisadores da área trabalho e educação, têm por base algumas
fontes básicas teórico-conceituais. Em um primeiro momento, a vertente marxista
e gramsciana (Marx, op. cit.; Gramsci, 1981; Manacorda, 1975 e 1990; Frigotto, 1985;
Kuenzer, 1988; Machado, 1989; Saviani, 1989 e 1994; Nosella, 1992; Rodrigues,
1998), em um segundo, sem abrir mão da vertente gramsciana, a ontologia do ser social
desenvolvida por Lukács (1978 e 1979; Konder, 1980; Chasin,1982; Ciavatta Franco,
1990; Antunes, 2000; Lessa, 1996).
Gramsci (op.cit.) propõe a escola unitária que se
expressaria na unidade entre instrução e trabalho,
na formação de homens capazes de produzir, mas também de serem dirigentes,
governantes. Para isso, seria
necessário tanto o conhecimento das leis da natureza como das humanidades e da ordem
legal que regula a vida em sociedade.
Opondo-se à concepção capitalista burguesa que tem por base
a fragmentação do trabalho em funções especializadas e autônomas, Saviani
(1989) defende a politecnia que “postula que o trabalho desenvolva, numa unidade
indissolúvel, os aspectos manuais e intelectuais. Todo trabalho
humano envolve a concomitância do exercício dos membros, das mãos e do exercício
mental, intelectual. Isso está na própria origem do entendimento da realidade
humana, enquanto constituída pelo trabalho.” (p. 15).
Frigotto argumenta em dois sentidos. Primeiro, faz a
crítica à ideologia cristã e positivista de que
todo trabalho dignifica o homem: “Nas relações de trabalho onde o sujeito é o
capital e o homem é o objeto a ser consumido, usado, constrói-se uma relação
educativa negativa, uma relação de submissão e alienação, isto é, nega-se a
possibilidade de um crescimento integral” (1989, p. 4). Segundo, preocupa-se com
a análise política das condições em que trabalho e educação se exercem na
sociedade capitalista brasileira; “como a escola articula os interesses de
classe dos trabalhadores... é preciso pensar a unidade entre o ensino e o trabalho
produtivo, o trabalho como princípio educativo e a escola politécnica” (1985,
p. 178).
Em um segundo momento, a reflexão toma forma tendo por base
Lukács (op.cit.). Em sua reflexão
sobre a ontologia do ser social, o autor examina o trabalho como atividade
fundamental do ser humano,
ontocriativa, que produz os meios de existência na relação do homem com a
natureza, a cultura e o aperfeiçoamento de si mesmo. De outra parte, o trabalho humano assume formas históricas muitas das quais degradantes, penalizantes, nas diferentes culturas,
na estrutura capitalista e em suas diversas
conjunturas.
Desse conjunto de ideias e debates foi possível concluir
que o trabalho não é necessariamente educativo, depende das condições de sua
realização, dos fins a que se destina, de quem se apropria do produto do
trabalho e do conhecimento que se gera (Ciavatta Franco, op. cit.). Nas
sociedades capitalistas, a transformação do produto do trabalho de valor de uso
para valor de troca, apropriado pelo dono dos meios de produção, conduziu à
formação de uma classe trabalhadora expropriada dos benefícios da riqueza
social e dos saberes que desenvolve. No campo da saúde, como na educação, o que
é um direito torna-se uma mercadoria, uma atividade como outra qualquer sujeita
ao mercado.
Tendo por base as exigências do sistema
capitalista, a educação profissional modelou-se por uma visão que reduz a
formação ao treinamento para o trabalho simples ou especializado para os trabalhadores
e seus filhos. A introdução do trabalho como princípio educativo na atividade
escolar ou na formação de profissionais para a área da saúde, supõe recuperar
para todos a dimensão do conhecimento científico-tecnológico da escola unitária
e politécnica, introduzir nos currículos a crítica histórico-social do trabalho
no sistema capitalista, os direitos do trabalho e o sentido das lutas históricas
no trabalho, na saúde e na educação.
Para saber mais
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